Grande figura! Deixou saudades a todos que o conheceram. Minha amizade com ele surgiu quando cismei de tocar violão.
O rock surgia como o grande acontecimento musical do século. Tudo o que eu desejava era aprender a tocar guitarra. Ela tornara-se o símbolo de um movimento identificado com a juventude e minha cabeça já tinha um objetivo: dominá-la por inteiro e extrair aquele som instigante, revolucionário e provocante para os padrões da época. Como sua estrutura foi baseada no violão, quem quisesse se tornar um guitarrista podia muito bem começar por aprender com o velho e bom “pinho”. Isto vale inclusive para os dias atuais.
Foi então que comecei a procurar por um professor de violão na cidade. Pergunta daqui, pergunta de lá e nada de encontrar um mestre. A Zimba, neste particular, me parecia um zero à esquerda.
Um dia, porém, me informaram sobre o tal de Mauro Garatéia que arranhava um violão e que por sinal namorava a Terezinha, filha do seu Dorlin, nosso vizinho. Foi através dela que cheguei até a casa dele lá no bairro do Sete, para ter a primeira aula. Lembro-me desse dia como se fosse hoje. Mauro me recebeu com sorriso fácil e foi logo puxando o violão. Começou a solar uma música que se chama “A Praia”, uma versão consagrada por Aguinaldo Rayol. Ainda que a música não fosse das minhas preferidas, juro que meu coração foi nas nuvens. Ver de perto alguém dedilhar aquele pedaço de madeira e fazer brotar dali uma seqüência melódica foi algo tão sublime, tão vibrante que ali mesmo percebi que eu estava começando um caminho sem volta. E o Mauro deve ter lido isto nos meus olhos e foi franco. Disse que não se considerava um bom violonista e que eu não deveria ter grandes expectativas quanto ao seu potencial de professor. Apenas dispunha-se a passar alguns acordes e algumas dicas sobre o dedilhado da mão direita.
Passamos então à prática, já o que eu queria logo era sair do zero. Começamos pelos acordes de Dó Maior e seus relativos. Era muita coisa, e logo percebi que daquela série já dava pra se encadear umas belas seqüências. Fiz as anotações num pedaço de papel e fiquei de voltar pra uma próxima aula na semana seguinte. Só que havia um problema: eu não tinha um violão pra treinar em casa. Falei isso e ele prontamente fez questão de me emprestar o seu. Sai dali radiante, certo de que agora era comigo. Só dependia de mim pra sair do zero. Tranquei-me em casa durante os seis dias seguintes. Minha mãe quase foi à loucura com as repetições, e mais repetições das seqüências de acordes. Mas era um mundo novo a se abrir pra mim. Fui cantarolando músicas e encaixando acorde pegando o fio da meada, numa obstinação insana e desvairada. Não comia e nem dormia direito. Cheguei pra aula seguinte. Mauro sentou-se a minha frente, deu um sorrisinho e perguntou: E daí, algum progresso? Apenas me limitei a mostrar os meus calos. E ele: isso eu já esperava! Estou falando de música. Já tocas alguma?
Criei coragem, mostrei o começo da “Casa do Sol Nascente”, depois “A volta” dos Vip´s e por fim “Eu daria a minha vida”, sucesso de Roberto Carlos, interpretado por Martinha. E o Garatéia só dizia: de novo, de novo. Como é que é mesmo essa daí?
E eu só sabia o começo delas, mas o meu “mestre” já estava entusiasmado em aprender aqueles rabiscos. Então perguntei: afinal, eu vim aqui pra aprender ou pra ensinar? Diz aí, Mauro!
E ele, com toda a sinceridade do mundo, jogou a toalha e disse: eu não tenho mais nada a te ensinar. Leva o violão emprestado por uns tempos. Voa sozinho, pois tuas asas são mais rápidas que as minhas!
Era esse o Mauro Garatéia, a quem passei a chamar de “Meu Aprendiz Professor”. Um coração com a generosidade de um anjo.
Enquanto caminhava em direção a minha casa refletia: estou num mato sem cachorro! Tenho muito pra aprender, minha família não tem dinheiro de sobra pra fazer um investimento de utilidade incerta e um violão emprestado que em breve terei que devolver. E agora José?
Decidi encarar o desafio sozinho. Endureci os calos, tinha dores horríveis nos braços e na coluna, mas não fiquei sentado à beira do caminho. E foi assim que aos poucos me vi tocando “Yesterday”, “Nossa Canção” e outras mais. Era eu em estado de graça.
Mas logo um acidente me deixou arrasado. Num descuido, a faxineira lá de casa deixou cair o violão no chão e o braço se partiu em dois. Estrago irreparável para as condições da época. Minha Mãe foi à loucura. Não havia outra saída senão começar uma poupança e comprar um violão novo para ressarcir o Garatéia. Enquanto isso eu me esquivava do “mestre” com receio da sua reação ao saber do fato. Sentia-me responsável por aquela situação e sofria pelo esforço da minha mãe em tirar leite de pedra pra remediar a tragédia. Passados alguns meses, saí de casa com um violão novinho em folha em baixo do braço com destino ao Sete, para cumprir com o dever de dar uma satisfação ao Mauro e lhe entregar o que era devido. Recebeu-me com o sorriso de sempre, escutou meu relato e foi taxativo: meu querido, leva de volta esse violão. Ele é teu. Eu não nasci pra isto. O talento está em ti e ele vai ser mais feliz nos teus braços do que nos meus. Imagino o quanto sofreste e quanto deve ter sido difícil pra tua família adquiri-lo. Vou torcer por ti e sei que não vais me decepcionar! Pensei: está aí um grande homem!
Acho que não o decepcionei, pois logo, logo já estava tocando nos bailes da vida com uma banda chamada “The Hits”. Mais tarde, virei compositor tendo o Mauro como dos meus maiores incentivadores. No lançamento do meu primeiro CD “Paixão Açoriana”, no TAC, ele estava lá, torcendo por mim.
Não foi por acaso que Garatéia colecionou uma legião de amigos. Sua vida foi uma verdadeira festa, mesmo depois de descobrir que contraíra uma doença grave. Sofria calado, lutou até onde pôde. Sua morte foi uma comoção na cidade. Na Igreja, me pediram pra cantar uma em sua homenagem. Escolhi “Sorri”, uma versão de “Smile” que ele adorava. Foi duro, mas consegui chegar até o fim. Sabe lá Deus como!
Mais tarde o Dorlin Júnior deu-me o estímulo e juntos fizemos uma música em sua homenagem. É uma poesia singela que diz assim:
AGORA OS FINS DE SEMANA
NÃO TÊM O MESMO PRAZER
BASTAVA AQUELA CHAMADA
PRA COMBINAR ONDE IA SER
ONDE IA SER A RODA
RODA GIRANDO A VIDA
NO GOLE DA GELADA
NO CHEIRO DA COMIDA
VIOLA TINHA DE TER
SOBRAVA ATÉ TOCADOR
E O SAMBA VELHO A CORRER
ERA O LEAL FIADOR
DAS JURAS PRONTAS EM RIMAS
DISSIMULANDO A DOR
A DOR QUE AOS POUCOS CALAVA
NOSSO APRENDIZ PROFESSOR