sábado, 2 de abril de 2011

Paixão Açoriana

Hermínia Francisco Coelho era minha avó materna. Marcou como ninguém minha formação. Descendente de açorianos, filha de pescador e marceneiro, foi uma guerreira, um exemplo de dona de casa e mais que isso, uma mulher lúdica. Gostava de nos levar pra praia a noite, contava histórias de pescadores e suas aventuras, nos mostrava as belezas das conchas e das estrelas do mar.
Querida por todos, sua casa era o ponto de convergência da família. Fazia de sua cozinha seu grande objeto de sedução. Não havia quem não se apaixonasse pelos seus biscoitos de coco, pelas suas roscas de polvilho, pelos bolos, pelo peixinho assado, pelas feijoadas, pelo ensopado de camarão e pelo cafezinho que aquecia o coração de quem chegasse. Fosse quem fosse era bem tratado. Não importava se filho, neto, irmão, vizinho ou até mesmo um pedinte. Alguns pescadores da redondeza, ao sair do mar, costumavam passar em sua casa pra um cafezinho e ali deixavam algum resultado de sua pesca. Uma tainha, um robalo, uma garoupa... Tudo muito fresquinho e que ela preparava com esmero inigualável.
Torcedora fanática do Botafogo de Mané Garrincha, Didi e Nilton Santos, discutia futebol com o conhecimento de quem ouvia diariamente os programas esportivos das rádios AM do Rio de Janeiro. Tinha opiniões contundentes e não costumava abrir mão de suas convicções.
Era exímia costureira. Fazia de tudo, desde a mais simples toalhinha de louça até os vestidos de baile das filhas e netas.
Certa vez eu estava sentado na varanda da sua casa conversando com meu avô, Aristides Coelho. Lá pelas tantas eu falei assim: Vô, eu tenho inveja do senhor!  E ele: Mas por que, garoto? E eu: Invejo sua sorte de ter casado com uma mulher tão maravilhosa!
Meu amigo Sérgio da Costa Ramos, brincando, diz que isto foi uma confissão de complexo de Édipo ao quadrado.
E disse-lhe mais: Se eu fosse o senhor, fazia uma poesia pra ela. E ele: Mas garoto, eu sou apenas um torneiro mecânico, mal sei escrever o meu nome. Não dá! Sugiro então que tu te coloques no meu lugar e escreve esta poesia em forma de música, pois já sabes tocar violão. Que tal? Falei: Está bom, fica combinado assim!
E aquela conversa ficou como um dever de casa pra mim. Por muitos anos a tarefa foi sendo adiada. Eu tentava, mas não conseguia chegar a um resultado convincente.
Até que um dia vó Hermínia veio a falecer. Sofri muito com a sua perda e talvez levado pela emoção do momento a música surgiu em minha cabeça. Foi um momento mágico, desses que a gente nunca mais esquece.
Na primeira oportunidade que tive de estar a sós com meu avô, peguei o violão e cantei:
SABIA SEMPRE ONDE ERA BOM DE SE PESCAR
GUARDAVA SEMPRE BONS TEMPEROS SÓ PRA MIM
SABIA MUITO DAS MARÉS
CATAVA CONCHAS PELO CHÃO
CONTAVA HISTÓRIAS DOS PESQUEIROS DA ARMAÇÃO
TINHA SEMPRE UM JEITO BOM DE ME AMAR
FAZIA SEMPRE UMAS LOUCURAS SÓ PRA MIM
GOSTAVA DO MEU CAFUNÉ,
BOTAVA ÂNSIA EM MINHAS MÃOS
JOGAVA LENHA NAS FOGUEIRAS DA PAIXÃO
E ERA BENDITA, ERA  BONITA
TAL COMO A LUA NO CANTO DOS ARAÇÁS
FELINA, DIVINA
ELA ERA A FERA QUE EU SONHAVA DOMINAR
E ERA BENDITA, ERA BONITA
TAL COMO A LUA NO CANTO DOS ARAÇÁS

MALDITA, A DITA

QUE ME DEIXOU PRA NUNCA MAIS EU SOSSEGAR
Quando acabei de cantar, seus olhos estavam marejados. Pouco meses depois também veio a falecer, talvez pra se juntar a dita. Tomara que estejam juntos!

3 comentários:

  1. Parabéns Jorge!
    bem-vindo ao mundo virtual tu que tua poesia e canções tão lindas leva-nos a viajar pelo universo do imaginário.
    Um abração,amigo!
    Lélia
    ww1.rtp.pt/icmblogs/rtp/comunidades

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  2. Queria ser o primeiro a postar um comentário aqui, mas me conformo em ser o segundo.
    Esta janela para o mundo é feitinho o que a gente precisa pra estar sempre em sintonia com tua mente iluminada. Um dia ainda aprendo a ser Jorge Coelho.
    Beijão

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  3. Querido amigo,fico feliz ao ver que continuas com garra.Aliás não duvidei nunca. Poetas são necessários e tu que cantas as coisas nossas, bem mais.Um beijão no coração e seja bem vindo ao clube .
    Valcíria(Cira)

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